Necessitando de usar os serviços de uma caixa postal, dirigi-me aos escritórios da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, localizados no prédio mais que centenário da Rua Primeiro de Março. Informado de que o assunto que iria tratar localizava-se no primeiro andar, encaminhei-me para o elevador, à prova de claustrofobia, eis que todo de grades e tela, no melhor estilo dos anos 20, inclusive o fosso onde o mesmo trabalha. Após fechar as portas pantográficas, procurei em vão, localizar os botões de ação do vetusto ascensor transparente, verificando, todavia, ser em vão aquela minha atitude, porque simplesmente eles não existiam. Resolvi, então, galgar os degraus da escada que levava ao primeiro andar, como todos, aliás, estavam fazendo sem titubear; só eu é que, já me sentindo meio ridículo, não me dera conta da inutilidade ou da impossibilidade do uso da ascensão mecânica, naquele antigo próprio da União.
Ao mesmo tempo em que galgava os degraus da escada feita de lindos mármores brancos, porém sujos e encardidos, ia apreciando seu maravilhoso desenho arquitetônico, e lamentando, intimamente, seu péssimo estado de conservação: degraus perigosamente gastos em suas bordas, quase afiadas pelo uso; diversas colunas de sustentação do largo e grosso corrimão – como o das escadarias do Teatro Municipal – quebradas ao meio, ou simplesmente arrancadas do local. Ao chegar ao saguão do primeiro andar, chamou-me a atenção um trabalho artístico em ferro de uma imensa grade decorativa, em forma de leque, e as colunas jônicas de sustentação do teto a contrastarem com os móveis e arquivos modernos, também em péssimo estado, sem qualquer estilo ou ao menos harmonia. Ainda sob os efeitos daquela experiência ao mesmo tempo gratificante – que nos transmitem a solidez e a beleza dos prédios antigos – e acabrunhadora, pelo descaso e pelo desamor das pessoas responsáveis por sua conservação, dirigi-me ao funcionário encarregado do serviço.
Muito solícito, o referido funcionário explicou-me que, infelizmente, havia mais pretendentes do que caixas postais disponíveis e que eu deveria inscrever-me em uma fila já com 260 pessoas físicas inscritas e, em outra lista, 60 pessoas jurídicas, igualmente aguardando sua vez. Enquanto fazia a minha inscrição no livro próprio, o serventuário em questão, vendo meu vivo interesse pelo serviço postal a ser prestado, e meu desapontamento pela impossibilidade de consegui-lo prontamente, disse-me que haveria um jeito de eu furar aquela imensa fila, passando à frente de todos aqueles pretendentes. Pensei logo que ele estivesse sugerindo uma compensação pecuniária pessoal, uma propina ou algo assim por debaixo do pano, como acontece em tantas outras repartições públicas do nosso querido e sofrido Brasil.
Qual não foi, porém, a minha surpresa, quando o servidor ofereceu-me um número para a minha já cobiçada caixa postal, desde que eu, simplesmente, me conformasse em pegar a chave original da caixa – contra a entrega de minha carteira de identidade – arcasse com o ônus financeiro e o trabalho de tirar uma cópia da dita chave para mim. Aceitei incontinenti o oferecimento, dirigindo-me imediatamente ao chaveiro mais próximo, indicado, aliás, pelo próprio servidor, e, já um tanto temeroso a respeito de quanto, afinal, poderia custar-me a cópia daquela chave. Em verdade, porém, não eram fundados os meus temores, pois a cópia respectiva não me custou senão a bagatela de Cz$10,00.
Voltando ao primeiro andar do prédio dos Correios – pela tal escada linda, mas faltando pedaços – fui, diretamente, à porta da caixa que me havia sido destinada, não logrando abri-la, contudo. Retornei, então, ao chaveiro e disse-lhe da minha impossibilidade de acionar a respectiva fechadura. Dizendo-me que o ideal seria que eu levasse a caixa até ele ou que ele comparecesse aos Correios para fazer aquela e as inúmeras outras chaves faltantes, o dono da tenda de chaves fez uma outra para mim, sem quaisquer novos ônus, a não ser a minha perda de tempo, àquela altura já de 30 minutos ao todo, desde que eu chegara à sede da EBCT, para o primeiro contato. Assim é que voltei àquele primeiro andar, galgando os mesmos já desgastados degraus, agora por mim mais desgastados ainda, com as minhas “idas e vindas” ao chaveiro. Voltei direta e ansiosamente à boca da minha caixa postal, tentando abri-la com a segunda chave. Como não lograsse êxito novamente – pois a segunda cópia feita também não funcionara – forcei, um pouquinho apenas, e acabei ficando com a porta da caixa na mão, presa à minha cópia e desprendida da parede.
Desgostoso e já meio irritado, dirigi-me ao solícito funcionário que, entre mil desculpas e uma certa vergonha pelo ocorrido comigo, assegurou-me que coisas como aquelas eram normais que acontecessem, pois assim como o chaveiro contratado pela empresa demorava muito a aparecer, o encarregado da manutenção, também; mais que, infelizmente, manutenção não era com ele e que, portanto, eu teria que aguardar mesmo aquela fila das 260 pessoas na minha frente. Resolvi, então, indagar-lhe sobre a existência de um chefe ou chefa da seção, e se o problema da falta de chaves ou de manutenção das caixas não seria ao menos de seus superiores, já que dele, simples funcionário, é que não era.
Após alguns minutos de cochichos com a chefa, voltou-me o funcionário para dizer que sua superiora resolveria dar-me uma outra caixa, em bom estado, sem que necessitasse fazer a cópia da chave original respectiva, pois aquela já possuía ambas. Como aparecera aquela caixa disponível, já com duas chaves, eu não sei. Naturalmente estava sendo subtraída do primeiro da minha fila de 260 pessoas que estaria para ser chamada nos próximos dias. Àquela altura quase duas horas de meu trabalho já havia jogado fora na faina de obter uma pequenina, singela e simples caixinha dos serviços postais dos correios do meu País.
Após assinar o contrato respectivo, o mesmo servidor, ainda solícito – me chamando de seu amigo – disse-me que eu deveria descer novamente as mesmas escadas e pagar, lá embaixo, a importância de Cz$ 33,33 e, depois, voltar – naturalmente pelas mesmas escadas – para pegar a minha vida do contrato e a já tão acalentada e sofrida cópia da chave da “nova” caixa.
Desci, novamente, aqueles degraus escorregadios contribuindo, como disse, para aumentar, ainda mais, o seu desgaste e fui procurar o guichet para pagamento da estranha quantia de Cz$ 33,33 correspondentes, segundo soube mais tarde, aos meses que faltavam para acabar o ano de 1986, findo qual eu terei que devolver minha chave, liberando a caixa respectiva ou pagar Cz$ 50,00 para renovar o contrato. Ao primeiro balcão a que me dirigi, indicaram-me um segundo, cujo funcionário, por sua vez, indicou-me um terceiro, em frente ao qual estavam estacionadas várias pessoas esperando, naturalmente, para serem atendidas. Indagando da única funcionária em exercício, por detrás do referido balcão, se era ali mesmo que eu pagaria o aluguel de minha – já quase conquistada, não sem algum sacrifício – caixa postal, respondeu-me ela, sem olhar nos meus olhos, que eu poderia ser atendido por qualquer um dos funcionários que ali trabalhavam. Como não houvesse nenhum outro atendente, indaguei-lhe se aquele “um” também poderia ser representado por ela, ao que respondeu-me, novamente, sem olhar para mim, que sim.
Após uns 20 minutos de espera, consegui meu recibo, não sem antes conformar-me, porém, em pagar por ele Cz$ 34,00, pois não havia troco para os quebrados Cz$ 33,33. É bem verdade que eu havia me oferecido para pagar aquela importância em cheque, a fim de facilitar o troco, respondendo-me, porém, a funcionária que era impossível, pois naquele dia ela não estava recebendo cheques não.
Galguei, pela terceira vez, os puídos degraus de mármore – pela primeira, quem o sabe enquanto novos, galgados pela nobreza brasileira idos de 1800 – das escadarias que levam ao primeiro andar, a fim de trocar o recibo pela cópia da chave, cópia do nosso contrato e minha carteira de identidade de volta. Fi-lo com grande alívio, após duas horas de ingentes providências, já querendo descansar um pouco meu corpo sobre os louros de minha vitória, representada por uma caixa postal, cuja porta não saía mais na minha mão e ainda por cima na frente de 260 pessoas, sem necessitar subornar ninguém ou esperar, sabe-se lá quantos meses ou anos, pela minha vez.
Descendo, novamente, os degraus já por mim considerados amigos – pois foram eles que, afinal, me conduziram, sempre com muita paciência e constância, à minha vitória final, fiquei pensando quanto tempo faltaria para o Brasil ser uma grande potência mundial nos campos gerencial, econômico, empresarial e tecnológico, pois se para administrar um simples serviço de caixas postais é tamanha a inoperância, o descaso, a falta de espírito público, mesmo de justiça, de operosidade, de eficiência e de exação no cumprimento dos deveres funcionais de tantos simples servidores públicos.
De que adianta estarmos defendendo, com unhas e dentes, a primazia e o monopólio da indústria da informática em nosso País se não temos, sequer, habilidade gerencial para administrarmos, com razoável eficiência, os serviços de outorga e de manutenção de caixas postais.
Quem já passou por outros países mais adiantados – sociológica, cultural, econômica e gerencialmente falando – como o pequenino, populoso e velho Japão, onde tudo, ou quase tudo, funciona a contento, ficará pensando: serão efetivamente necessários dois mil anos de civilização para chegarmos onde eles chegaram? Bastaria deixar que o tempo passasse, isto é, fluíssem os 1.500 anos que nos faltam? E os países como a Índia e o Egito que têm mais de dois mil anos e são – quem o sabe – piores do que o nosso?
Sinceramente não sei se será uma mera questão de tempo, ou o que deva ser feito. Só sei que, se cada um de nós brasileiros, em particular, só cuidarmos exclusivamente da nossa parte, por não querermos ir além das atribuições que nos são cometidas, toda a vez que os responsáveis por serviços, dos quais o nosso depende, falham no cumprimento de seus deveres funcionais sem ter ninguém – um superior – que os compila a isso, ficaremos, sempre, como eu fiquei, com a tampa da “caixa postal na mão”, lamentando eternamente a distância social, econômica, cultural, tecnológica, gerencial e política que nos afasta cada vez mais, irremediável e terrivelmente, dos países ditos civilizados e desenvolvidos, ricos, aliás, como o nosso o é – ao menos potencialmente -, não tão grandes, nem tão belos, porém, como o nosso; não tão livres de terremotos e intempéries como o nosso; não com uma temperatura tão amena, nem com um povo tão ordeiro como o nosso; país que, infelizmente, não estamos merecendo, nem ao menos sabendo desfrutar, por causas que só a nós brasileiros são imputáveis, mas cujo conhecimento ignoramos, e o que é pior, nem nos importamos em conhecer.
JULHO 1986.
Prof. Luiz Felizardo Barroso Presidente da COBRART GESTÃO DE ATIVOS Presidente da ADVOCACIA FELIZARDO BARROSO & ASSOCIADOS luiz@felizardo.com
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